Entre capitães e professores, a escola: e agora, José?
Um bate-papo improvável, mas necessário, sobre a militarização das escolas brasileiras

À porta da padaria, encontram-se, logo cedo, Raimundo e Nascimento. Professor e capitão se cumprimentam, e entram. José, o atendente, os tendo visto chegar, já prepara o café costumeiro de cada qual. Sentados lado-a-lado, parecem pouco dispostos. O atendente, no entanto, não perde a oportunidade de um bom papo.
José — Fala Capitão
Nascimento — Bom dia, Zé!
José — E a vagabundagem, tacando o pau neles?
Nascimento — Eita, Zé, para cima de mim logo cedo? Mas, tá difícil mesmo, rapaz. Chego a pensar que tem mais gente de mal que de bem por aí.
(Um gole que queima a língua)
Nascimento — Às vezes dá vontade de descer o sarrafo mesmo, colocar essa moçada para andar na linha, como se diz. Mas, isso me incomoda, Zé. Essa meninada vive fazendo besteira é por falta de oportunidade, de cultura, de lazer, de educação.
José — Educação é o caminho, Capitão. Eu sempre digo isso. O professor tá aí do seu lado para não me deixar mentir. É ou não é, Raimundo?
(Raimundo respira fundo, menando a cabeça)
Raimundo — Olha, diz, mesmo. Toda a hora. Mas acho que faz tempo que você não entra em uma escola, né, Zé? A coisa tá solta: a meninada não respeita mais nada nem ninguém. Eu, mesmo, já quase fui agredido. Te contei aqui outro dia, pô. Faz tempo que a escola virou caso de polícia.
José — Calma, professor. Isso vai acabar logo. O Capitão pode confirmar: vi no jornal que vão botar a polícia dentro das escolas, para administrar, impor ordem… o bicho vai pegar, vai acabar a mamata: a turma vai ter que estudar e pronto!
(Quem busca fôlego, agora, é o Capitão)
Nascimento — Tenho acompanhado isso aí, sim, José. E ando bastante preocupado, sabe? Não me parece tão simples justificar a presença da polícia na escola. Fico pensando como vai ser isso…
(José põe as mãos sobre o balcão, inspirado)
José — Como vai ser eu também não sei bem, capitão. Mas, pelo que vi, agora é contigo, meu amigo.
Nascimento — Então… se for para contribuir com a gestão, dialogar com professores e pais, fazer conscientização, eu topo. A polícia poderia se fazer mais presente mesmo, circular no entorno, auxiliar e orientar em questões de segurança. Poderíamos criar alguma coisa nos conselhos municipais, participar de redes de proteção. Mas meu receio é que estão nos convidando para substituir o trabalho dos pedagogos, dos professores, querendo transformar a escola em quartel e ensinar na marra. Aí eu tô fora. Os quadros da polícia não estudam currículo, conteúdo escolar ou desenvolvimento humano, como fazem os educadores. Isso é coisa pro Raimundo.
(O professor sobressalta)
Raimundo — Desculpa, Capitão, mas o que a gente sabe bem é ensinar conteúdo! E olhe lá, ainda. Precisamos, sim, da ajuda de quem sabe lidar com a violência, com o crime. Nessa questão da disciplina, na escola, não tem quem dê conta não.
José — Verdade. Passa cada caso absurdo na tevê, né, professor?
(Mais café e as banquetas começam a ranger)
Nascimento — Mas, pensem: vocês acham que a polícia está dando conta disso tudo aqui fora? Nem a nossa missão original, institucional, estamos conseguindo cumprir bem, imagina a dos educadores…
José — Isso é verdade também.
Nascimento — (…) assim como a educação pública, nós, da segurança, também sofremos com falta de apoio, de formação, de estrutura. Nós enxugamos gelo, todos os dias, gente. Vocês sabem que não é difícil encontrar casos de truculência e até letalidade de ações policiais nas ruas. No Brasil, as taxas de sucesso no combate ao crime e à violência dão vergonha.
(Os corpos acusam concordar)
Raimundo — Isso aí é verdade mesmo! Professores e policiais deveriam estar do mesmo lado, não se enfrentando a mando de corruptos, como na “Richa” de 2015 no Paraná.
José — Mas, mesmo assim, Capitão, se a polícia estivesse dentro da escola, acabava com o mal na origem, não? A presença policial impõem respeito, mete medo. Bandido não ia mais se criar ali.
Nascimento — Pô, Zé, respeito imposto? Submissão dos alunos à força? Pense bem, meu caro: o que um policial sabe de psicologia, de didática, de ensino escolar? Na melhor das hipóteses, em curto prazo, podemos fazer os jovens obedecer, ok, mas a que preço? Será que vale a pena vigiá-los, amedrontá-los, como fazemos com a bandidagem? O Raimundo estudou essas coisas: é assim que se desenvolve a moral e a ética nas crianças e jovens, professor?
(Raimundo fecha os olhos por alguns segundos… respira fundo)
Raimundo — Ah, Nascimento, na faculdade meus professores diziam que obediência não devia ser confundida com respeito. Que autoridade era salutar, mas que o autoritarismo era pernicioso. Achava bonito, até acreditava. Mas na prática a teoria é outra. Eu consigo entender essas ideias de que a formação das crianças e jovens depende do diálogo, que se eles não errarem, não aprendem… mas o dia-a-dia massacra a gente.
Nascimento — E aí, por conta disso, então, o Estado desiste de educar as pessoas? A sociedade desiste e chama a polícia para vigiar a meninada desde a mais tenra idade. E se aprontarem algo, o que fazemos? Prendemos?
José — Prender eu não sei, mas tem que torcer o pepino desde pequeno. Vi que vão botar lá aquelas disciplinas de moral, de ordem, de civismo. É isso aí. A turma aprende que manda quem pode e obedece quem tem juízo.
(Agora é o capitão quem respira, enquanto recolhe os farelos do pão na chapa)
Nascimento — Nossa senhora, José! Vocês tem que entender que alunos não são formados apenas pelos conteúdos. Tudo ensina, desde a postura dos professores e diretores, a característica dos espaços da escola, as possibilidades de participação, de pertencimento no ambiente e nas decisões que se toma. Como querer que um estudante cuide da escola se o próprio Estado não o faz, por exemplo? Você acha que vamos resolver tudo isso com fardas e armas dentro da escola? Que mensagem queremos passar? Força? Hierarquia? Rapazes, por favor, a violência é um problema social e a escola faz parte da sociedade, portanto…
(Bebem e refletem)
Raimundo — Pô, Capitão, você nem parece polícia. Parece mais aqueles meus professores. Tens que entender que nessas escolas de periferia tem moleque que já é bandido formado. Aí vai para a escola e contamina. Se puséssemos a polícia nessas escolas já dava uma boa melhorada, não dava?
Nascimento — Segura o preconceito, Raimundo: você é um professor! Pare e pense no que está dizendo. A polícia serve para as escolas de periferia, então? Não há brigas, drogas e violência nas escolas mais centrais, nas escolas privadas das elites? Vou te dar dois exemplos para contrapor: você acha que o filho daquele deputado, que matou dois inocentes em Curitiba, dirigindo bêbado e em alta velocidade, estudou onde? E aquele filho da desembargadora do Mato Grosso do Sul, preso com 130 quilos de droga e 200 munições de fuzil? Esses crimes não nasceram em escolas de periferia, meu caro.
José — Eita porra. Agora pegou pesado, Capitão.
(Logo surgem dois novos copos de café preto no balcão)
Nascimento — Pesado, Zé? Anos atrás, em uma das maiores escolas privadas de Florianópolis, houve um caso de estupro de uma adolescente no banheiro. Um dos garotos acusados era de uma família tradicionalíssima da cidade. Pesado foi o silêncio. Pesado foi o esquecimento. Se fosse em uma escola pública, periférica, imaginem a repercussão.
Raimundo — Calma lá, Capitão. Também fico indignado com esses casos. Mas são pontos fora da curva, casos isolados. Eu tenho lido que os índices de violência nas escolas militarizadas caem drasticamente. Vai negar isso também?
Nascimento — Claro que caem, professor. É a polícia que está lá, com ostensividade e repressão. Mas, no caso de escolas, existem muitas ações de caráter pedagógico, social, comunitário com impacto similar ou melhor. Você sabe. O trabalho dos diretores, o envolvimento das comunidades, o compromisso dos professores e, principalmente, a atenção do poder público podem transformar a realidade da educação, enquanto a polícia se ocupa de contribuir a partir da segurança pública, sem misturar os espaços originais.
Raimundo — Na teoria é bonito, Nascimento, mas o problema é urgente. A juventude está perdida. Temos que preparar essa garotada para ser alguém na vida.
Nascimento — E vamos fazer isso como? Proibindo o brinco, fazendo coque nas meninas, cortando cabelo black, uniformizando as roupas da moçada? Tem certeza que é isso que faz a diferença? Um dia desses, em um escola militarizada aí, apagaram umas pinturas que os estudantes haviam feito no muro. Cara, que doidera é essa de higienizar a juventude? Ganhamos o que suprimindo as manifestações culturais dessa moçada? Ou nós queremos que eles sejam mesmo passivos, submissos, que não criem nada novo? Vocês já foram jovens, caramba, pensem a respeito…
(Chega de café, por favor)
José — Tá bom, Capitão. Tá “ok”. Mas eu vi uma reportagem que disse que o desempenho dos alunos das escolas militares é dos melhores. Só por isso já acho que valeria a pena.
Nascimento —Olha, muitas escolas militares são ilhas de excelência, sim, mas acho que isso tem mais relação com a formação dos professores, com a estrutura do ambiente. Em muitas, inclusive, os alunos são selecionados — os ditos ruins, acabam saindo, ou nunca entrando. Aí fica fácil, pô.
Raimundo — Mas a disciplina, a cobrança do comprometimento, a competição estimulada, tudo isso não importa também?
Nascimento — Depende, como falei há pouco. Os educadores têm que acompanhar, pesquisar o impacto de cada fator, cada situação, cada realidade. Poderíamos fazer algumas experiências e monitorar, que tal? O que não dá é para sair por aí emplacando militarização de escola como solução para tudo.
Raimundo — Não sei, não. Eu insisto na coisa do desempenho que o Zé falou: todo mundo diz que a molecada das escolas militares arrebenta nos testes e provas.
Nascimento — Eu entendo, mas isso também acontece em outras escolas, mesmo na rede pública, pelo que soube. O filho de um colega de farda estuda em um Instituto Federal, por exemplo. Ele me explicou que essas escolas, e outras vinculadas a universidades, têm índices de desempenho acima de muitos países europeus. Se não há fardas, armas ou disciplina militar nessas escolas, será mesmo que precisa da polícia para construir compromisso, bom trabalho didático e resultados de ponta?
(Olha a carteira. Conta o dinheiro)
Raimundo — Mas, aí que está: nossa formação é ruim, nossa estrutura é complicada. Como vamos lidar com os conteúdos e ainda com a questão da violência? Acho que a escola tem muito a aprender com o quartel, sim. Falta noção de hierarquia, de ordem. Se tiver que ser arbitrário, impositivo, paciência.
Nascimento — Olha, Raimundo, escola e o quartel são espaços institucionais bem diferentes. Na escola, até onde me consta, as decisões deveriam ser comunitárias, democráticas. A escola é da sociedade, não do Estado.
(Recolhe as louças)
José —A violência pode não nascer na escola, mas a alcança, né? Eita, falei bonito agora, hein?
(Levantam-se)
Nascimento — Falou, sim, Zé. Mas o que pode nascer na escola é justamente uma postura de não-violência. Se o jovem de origem mais pobre não tem acesso cultura, não tem lazer, não tem esporte, onde mais ele vai poder ter isso, senão na escola?
Raimundo — Nisso você tem razão, Capitão: violência e o medo eles já têm, todos os dias, até em casa.
(Dinheiro no balcão)
Nascimento — Valeu, Zé, obrigado. E não esquece: uma sociedade que fala tanto em educação, deveria preferir educar a polícia do que militarizar a escola.
Raimundo— Vixe! Tchau, Zé. Deixa eu ir embora dar minha aula antes que Capitão me convide para pedagogizar a polícia.
* O autor é professor e filho de militar.